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Aborto: o que diz a lei no Brasil
24/06/2022 08:36 em Brasil

Caso da criança de Santa Catarina estuprada e impedida de interromper a gestação revela dificuldade de acesso a um direito garantido na legislação

O caso da menina de 11 anos que foi estuprada e impedida de realizar um aborto em Santa Catarina trouxe à tona a dificuldade de mulheres, adolescentes e crianças interromperem a gestação mesmo em condições autorizadas pela lei. 

Além de uma gravidez decorrente de estupro, é possível abortar no Brasil quando há risco para a saúde da gestante e se o feto é anencéfalo. Ainda assim, há barreiras, como prova a situação da criança de Tijucas, na Grande Florianópolis.

Como sua gestação já havia atingido a 22ª semana, o hospital que prestou atendimento pediu autorização da Justiça para realizar o aborto. A juíza Joana Ribeiro Zimmer colocou a criança em um abrigo, afastada da mãe, responsável legal que estava de acordo com a interrupção da gestação, e insistiu para que a menina desse sequência à gravidez.  Ela passou pelo procedimento na quarta-feira (22), com 29 semanas de gestação. 

Para entender o que diz a legislação brasileira sobre quando está autorizado abortar no Brasil, como as mulheres e meninas devem proceder, qual é a pena para casos não autorizados, entre outras questões, GZH consultou a advogada Renata Jardim, coordenadora da área de violência da Ong Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos, organização que atua na defesa dos direitos das mulheres e meninas. 

O aborto está descrito em qual lei?

O aborto é tipificado como crime no Código Penal de 1940. Ali, também diz em quais circunstâncias não há criminalização ao cometer aborto. Também há uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que vai autorizar aborto em caso de má-formação fetal. 

Em que casos é permitido fazer aborto no Brasil?

Apenas em três situações: quando a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco à vida da mulher e no caso de feto anencéfalo, que foi permitido após uma decisão do STF de 2012.

O que diz a lei sobre o aborto em menores de 14 anos que foram estupradas?

O Código Penal (artigo 217 a) entende que manter relação sexual com menores de 14 anos é sempre considerado estupro de vulnerável. A partir disso, toda menina menor de 14 anos que engravidar tem o direito ao aborto legal. As orientações para a realização da interrupção da gestação no caso de menores de 14 anos não estão previstas no Código Penal, mas em diretrizes gerais do Ministério da Saúde, tanto para mulheres quanto meninas. Ou seja, não há diferenciação no processo.

Como fazer um aborto legal? Há alguma lei que oriente sobre como proceder?

Nossa legislação não fala como deve ser realizado o aborto. A única coisa que diz é que precisa estar garantido que a mulher consente com a interrupção da gestação ou, no caso de menor de idade, que há o consentimento de seu representante legal. Mas a lei federal 12.845, de 2013, embora não fale literalmente na questão do aborto, estabelece o atendimento obrigatório nos hospitais a pessoas que sofreram violência sexual. Os hospitais têm que ter atendimento especializado para vítimas de violência sexual. 

A lei fala sobre prazo para interrupção da gestação?

Não tem lei que fale sobre um prazo para interrupção da gravidez. Há uma norma técnica do Ministério da Saúde que chama-se "Prevenção e tratamento de agravos resultantes de violência sexual contra mulheres e adolescentes", de 2012. Diz o seguinte: "Não há indicação para interrupção da gravidez após 22 semanas de gestação". É uma orientação para os serviços de aborto legal, não tem força de lei. Nos casos de meninas, há evidências científicas que seguir com a gravidez até o parto tem maior risco para saúde da gestante do que o procedimento de interrupção.

Os médicos podem se negar a realizar um aborto em caso de estupro, com base no tempo de gestação?

O Código de Ética Médica diz apenas que é direito do médico "recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência" (artigo 28). Porém, isso não pode prevalecer em detrimento do direito da mulher de realizar o aborto previsto em lei. Essa prerrogativa não pode ser invocada em situações de emergência e quando não houver outro médico para realizar o procedimento. Além disto, o Estado brasileiro tem a obrigatoriedade de garantir esse direito. Então, será necessário encontrar outro médico que faça o aborto, nas circunstâncias autorizadas no Código Penal.

No caso de negativa por parte do hospital, tem que buscar o Ministério Público ou Defensoria Pública, ou, ainda, advogado particular, para que o direito da mulher seja cumprido. Se houver negativa por parte do judiciário, há instrumentos para questionar essa decisão por meio de recursos. 

A mulher precisa apresentar algum documento para fazer um aborto dentro das circunstâncias autorizadas no Código Penal?

O Código Penal não exige qualquer documento, somente que haja consentimento da mulher. No entanto, para os casos de aborto decorrente de estupro, há uma portaria do Ministério da Saúde que regulamenta a realização nos hospitais. Esse documento foi reeditado em 2020 e, partir disso, diz que é obrigatório que os médicos que acolhem a vítima e notifiquem as autoridades policiais sobre o caso. Mas é uma portaria, não tem força de lei. A interpretação que se faz é que os hospitais podem informar a polícia, mas sem identificar as vítimas. A própria Secretaria Estadual de Saúde (SES) tem uma recomendação aos hospitais para que não cumpram com essa orientação de informar a polícia.

No caso de aborto decorrente de uma violência sexual, são cinco documentos que o hospital precisa preparar, junto com o prontuário, que valem para todas as vítimas de estupro, sejam mulheres ou meninas:

1) Relato da gestante a dois profissionais de saúde, assinado por ela ou por seu representante legal, indicando local, dia e hora do fato da violência sexual que resultou na gravidez, além do tipo e forma de violência, descrição física dos agentes do crime e, se houver, identificação das testemunhas; 

2) Parecer do médico, com exame físico e ginecológico;

3) Termo de aprovação do procedimento de interrupção da gestação, aprovado por no mínimo três pessoas da equipe multidisciplinar do serviço de saúde;

4) Termo de responsabilidade assinando pela mulher dizendo que ela está falando a verdade, ou do representante legal;

5) Termo de consentimento livre e esclarecido, que é quando a mulher diz que aceita o procedimento e que foi esclarecida sobre como vai acontecer e quais são os riscos.

Quais são as penalidades para o aborto não autorizado?

Os artigos 124, 125, 126, 127 e 128 do Código Penal falam sobre as penas decorrentes do aborto não autorizado. Detenção de um a três anos para casos em que a mulher provoca o aborto em si mesma ou consente que outra pessoa provoque (artigo 124). Se a gestante sofrer alguma lesão durante o aborto, a pena é aumentada em um terço e, no caso de vir a óbito, é duplicada - aí, quem vai responder é a pessoa envolvida (artigo 127). No caso da pessoa que provocar o aborto na gestante, com o consentimento dela, a pena é de reclusão de um a quatro anos (artigo 126). Se não houver o consentimento dela, a pena é de reclusão de três a 10 anos (artigo 125).  

E no caso de uma mulher que fizer um aborto fora da lei? Há lei que interceda a seu favor?

Toda mulher que pratica o aborto, em qualquer situação, tem direitos e garantias fundamentais que a protegem. O primeiro deles é receber atendimento em saúde quando houver necessidade. Os profissionais de saúde que prestarem o atendimento também devem respeitar o direito da mulher de guardar sigilo das informações em razão do exercício da profissão. O sigilo médico é um direto da mulher e um dever dos profissionais de saúde. O artigo 66 da Lei de Contravenções Penais diz que o médico não pode comunicar às autoridades crimes a respeito de crimes dos quais tiveram conhecimento no exercício da profissão - isso no caso de a comunicação expuser o paciente a procedimento criminal. Caso haja criminalização, a mulher terá direito a um advogado para acompanhar a investigação criminal e o processo. Se ela não puder pegar, pode ser assistida pela Defensoria Pública.

Informação: Correio do Povo

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