Regulamentação em Estados e municípios e estímulo a criação de programas de integridade estão entre lacunas apontadas por especialistas
Aprovada e sancionada sob o fervor dos protestos que tomaram as ruas do país em 2013, a Lei Anticorrupção (12.846/2013) completa 10 anos nesta terça-feira (1º). A legislação, que estipula as punições a empresas envolvidas em atos ilícitos, tem ampla aceitação do setor corporativo, mas ainda precisa ser regulamentada por todos os entes federativos para que seus efeitos sejam plenamente aplicados.
A norma é considerada uma mudança de paradigma por viabilizar a punição de pessoas jurídicas beneficiadas por atos de corrupção, como fraude em licitação ou oferecimento de vantagem indevida a agentes públicos. Antes, apenas administradores ou funcionários eram punidos por esse tipo de crime.
Outra novidade foi a previsão dos acordos de leniência, para estimular a colaboração nas investigações dos esquemas em troca de punições mais brandas. Em paralelo, a lei recomenda a criação dos setores de compliance nas empresas, a fim de prevenir desvios.
As alterações, que entraram em vigor em abril de 2014, foram projetadas para tornar a legislação brasileira semelhante à dos países desenvolvidos que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e ganharam relevância a partir de 2015, com a punição de empresas envolvidas na Operação Lava-Jato.
Embora estabeleça uma série de penalidades para as empresas, a norma é aprovada pelo topo do setor corporativo, conforme pesquisa divulgada nesta segunda-feira (31) pela Transparência Internacional e pela consultoria Quaest, que ouviu cem executivos de compliance das 250 maiores empresas brasileiras.
De acordo com o levantamento, 95% dos entrevistados consideram a legislação positiva e 82% apontaram crescimento nos investimentos de programas de integridade.
Na avaliação da advogada Emília Malacarne, do escritório Souto Correa, que é especializada nas áreas de Compliance e Penal Empresarial, a normativa supriu uma lacuna no ordenamento jurídico do país:
— Não tínhamos uma lei que punisse as pessoas jurídicas pelos atos praticados e pelos benefícios que receberam. A Lei Anticorrupção é rigorosa e prevê que o ato de um funcionário de qualquer ponta da cadeia hierárquica ou de um terceiro contratado pode ensejar a responsabilização.
Tanto no meio empresarial quanto no mundo jurídico, é praticamente consenso que a normativa significou um avanço para prevenir e combater crimes contra a administração. Ao mesmo tempo, também são comuns observações sobre a necessidade de aprimoramento da lei.
Para Janaína Pavan, analista de Governança e Compliance da Transparência Internacional Brasil, uma das lacunas existentes é a falta de regulamentação da norma pelos entes federativos.
— Um dos principais desafios que temos é a regulamentação dessa lei nos Estados e municípios, para que ela possa ter uma aplicação mais efetiva — aponta Janaína.
A preocupação é compartilhada pelo promotor de Justiça Tiago de Menezes Conceição, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Proteção do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa, Cível, Família e Sucessões do Ministério Público do RS.
Conceição lembra que o MP atuou em cooperação com a Famurs e o Tribunal de Contas do Estado para estimular a criação das legislações municipais sobre o tema. No entanto, o balanço mais recente aponta que apenas 253 das 497 cidades gaúchas regulamentaram a norma.
— Nosso trabalho foi no sentido de estimular a criação das legislações municipais para que os municípios consigam aplicar as sanções administrativas que a lei determina — relata o promotor.
No âmbito do governo estadual, a normativa foi regulamentada em uma lei de 2019, proposta pelo então deputado Tiago Simon (MDB), e por um decreto assinado em 2020 pelo governador Eduardo Leite.
Caminhos para o aperfeiçoamento
Além da regulamentação em todos os entes federativos, especialistas apontam espaço para aperfeiçoar o texto. Na avaliação da advogada Emília Malacarne, a lei deveria implementar incentivos mais claros à criação dos programas de integridade nas organizações.
— Se a lei pudesse prever um incentivo positivo à implementação de programas de compliance, talvez houvesse maior adesão por parte de pequenas e médias empresas — avalia.
Para Janaína Pavan, da Transparência Brasil, a norma poderia conter dispositivos para incentivar pessoas físicas que firmam acordo de leniência em casos de corrupção envolvendo as empresas:
— A lei possibilitou vários avanços nas investigações, mas ainda tem algumas falhas. Uma delas é de que os benefícios são restritos às empresas, o que faz com que as pessoas físicas muitas vezes não tenham tanto interesse em dar segmento nos acordos e nas delações.
Na pesquisa feita junto aos executivos das maiores empresas brasileiras, apenas 42% apontam que a norma fortaleceu muito os programas de compliance, enquanto 57% dizem que fortalece um pouco e 1% avalia que não houve fortalecimento.
Para 91%, os sistemas de integridade das empresas brasileiras ainda são imaturos. Em contrapartida, 57% acreditam que o setor de compliance vai crescer nos próximos anos.
O que prevê a lei anticorrupção
Responsabilidade Objetiva - empresa pode ser responsabilizada quando for beneficiada por caso de corrupção, sem necessidade de comprovação de culpa ou dolo
Penas mais rígidas - em punição administrativa, valor da multa pode chegar até a 20% do faturamento bruto da empresa; na esfera judicial, pode ocorrer até a dissolução compulsória da pessoa jurídica
Acordo de leniência - se colaborar com investigações, empresa pode conseguir atenuar as penalidades
Compliance - as companhias devem criar um setor interno de integridade, que estimule denúncias de irregularidades e a aplicação do código de ética e de conduta.