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Pandemia traz desafios às eleições
Brasil
Publicado em 31/08/2020

Campanha mais virtuais, mudanças no calendário e influência do debate sobre a Covid-19, entre outros, deverão tornar essa um pleito inédito

 

As mudanças nas regras eleitorais já previam que as eleições municipais de 2020 teriam elementos novos. Porém, foi o cenário imposto pela pandemia da Covid-19 que realmente ampliou o panorama inédito deste pleito. Ao contrário do modelo tradicional, a maneira de se fazer campanha este ano desafia partidos, candidatos, autoridades e, claro, os eleitores. Sai o tão comum corpo a corpo e entra uma presença mais massiva e efetiva no mundo virtual. Será pelas plataformas de comunicação virtuais que ocorrerão, por exemplo, as convenções partidárias, autorizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com a recomendação de que não ocorressem aglomerações, a partir de segunda-feira, dia 31, até 16 de setembro. As datas já estão adaptadas ao panorama da pandemia, que fez com que o cronograma fosse alterado em 45 dias, garantindo mais condições sanitárias para a realização do pleito, o que também fez com que o primeiro turno da eleição fosse adiado de 4 de outubro para 15 de novembro. Outros desafios também estarão presentes até o ponto alto do processo democrático, a votação.

 

CAMPANHA VIRTUAL

A eleição de 2018 já havia mostrado o poder e o impacto das redes sociais e dos grupos de trocas de mensagens nas campanhas eleitorais. Segundo o advogado especializado em Direito Eleitoral Acácio Miranda, essa será a eleição mais virtual da história, em um movimento que vinha cresceu nas últimas eleições. Miranda cita que em São Paulo, na disputa pelas 94 vagas na Assembleia Legislativa, no pleito de 2014, três candidatos foram eleitos utilizando apenas, ou massivamente, as redes sociais. Quatro anos depois, em 2018, o número saltou para 30. “Foi possível ver que os métodos tradicionais de campanha foram diminuindo e vão ser reduzidos ainda mais nesta eleição”, aponta.

A relevância da campanha virtual não surpreende, especialmente no cenário imposto pela pandemia, com o distanciamento social, o que deverá tirar, mesmo que não totalmente, do cronograma das campanhas as tradicionais caminhadas ou encontros com grandes grupos de eleitores. Nesta linha, o cientista político da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Luís Gustavo Mello Grohmann acredita que, com a diminuição das atividades que envolvam aglomerações, a importância dos meios virtuais aumentará. Esse novo formato de campanha deverá ser prejudicial para os candidatos novos na política, indica Rodrigo Stumpf González, também cientista político da Ufrgs. “Os desconhecidos terão dificuldades de romper essa barreira. Aquele indivíduo que já era conhecido terá uma certa vantagem em relação ao iniciante.” Sem o corpo a corpo, com uma agenda de atividades que antes era marcada por dezenas de jantares e almoços, nas redes sociais a eleição já começou.

Stumpf González contextualiza que o processo eleitoral no país vem sendo alterado nos últimos anos, com uma campanha cada vez menos visual nas ruas. Isso começou, por exemplo, com a decisão do TSE de proibir os outdoors, depois com a limitação do uso de placas de rua. O próprio santinho impresso (a propaganda com informações como nome do candidato e seu número) foi perdendo espaço para o distribuído virtualmente. “O que prevejo é que, como já estamos acompanhando nas pesquisas, o eleitor vai escolher o seu candidato muito perto do dia do pleito. Logo, nos dias finais da campanha, deverá ser intensificado o contato com os eleitores”, ressalta o cientista político. Neste contexto, o presidente da Famurs e prefeito de Taquari, Maneco Hassen, aponta outro elemento. Para ele, o distanciamento social irá dificultar a participação e o envolvimento das pessoas na eleição, uma vez que boa parte das atenções ainda será em relação à pandemia.

Com este panorama, especialistas alertam para os riscos que essa campanha predominantemente virtual poderá trazer ao processo democrático. Por exemplo, as fake news, ou campanhas de desinformação, como definido pelo TSE, geram preocupação. O maior receio é pela sua capacidade de impactar e influenciar no resultado por meio de conteúdo inverídico e pelo fato de uma parcela considerável da população ser suscetível a esse tipo de conteúdo. “Essa pode ser uma situação crucial na eleição”, avalia Acácio Miranda.

Os impactos das informações falsas ainda são incertos, mas não podem ser negados. “As mentiras eleitorais (fake news) foram potencializadas com os atuais meios de comunicação virtual. Sempre existiram (mentiras eleitorais), mas seu impacto era bem menor”, avalia Grohmann. Ele apresenta outro elemento: as limitações de acesso à Internet e a bons aparelhos de muitas pessoas, o que compromete a busca por mais informações e até para sanar dúvidas em relação a conteúdos duvidosos. “Há apenas o reforço da ignorância política (não se trata de escolaridade) ou da péssima formação, com arraigamento de preconceitos e ideologias já existentes.”

Para coibir essas práticas, o TSE tem investido em ações de conscientização. “O foco tem que ser o eleitor, para que ele não compartilhe informações falsas”, ressalta o presidente do Tribunal Regional Eleitoral do RS, desembargador André Villarinho, citando campanhas neste sentido, que serão intensificadas em setembro, outubro e novembro.

Ainda buscando coibir as fake news efetivamente, há uma resolução do TSE que obriga o candidato a checar as informações antes de compartilhá-las. Aprovada no final do ano passado, essa será a primeira vez que a medida será colocada em prática. A ação também prevê direito de resposta à vítima, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do autor da informação inverídica.

 

AS PROPORCIONAIS

 

Como se elege um vereador?

Os vereadores são eleitos pelo sistema proporcional. Este sistema primeiro seleciona os partidos mais votados e depois verifica quais foram os candidatos mais votados. Como isso é feito? Um município X tem, por exemplo, dez cadeiras na Câmara Municipal e, na eleição deste ano, teve um total de 10 mil votos válidos. Assim, calcula-se o quociente eleitoral, que é, na prática, a divisão dos votos válidos pelo número de vagas. Neste caso, o quociente eleitoral é 1 mil. O quociente é o número mínimo de votos que um partido deve ter para eleger um vereador na cidade X. Depois disso, as vagas são repartidas proporcionalmente à quantidade de votos que cada partido recebeu. Dentro do partido, as cadeiras são distribuídas pela ordem do mais votado para o menos votado. Os partidos que não atingirem, na totalidade dos seus candidatos, o quociente não poderão ocupar nenhuma vaga.

Essa projeção de aumento no número de candidatos ocorre porque, segundo a legislação, cada partido pode apresentar nominatas com até 1,5 vez o número de cadeiras disponíveis. Por exemplo, em Porto Alegre, a Câmara tem 36 cadeiras. No cálculo, cada partido pode apresentar no máximo 54 candidatos a vereador. O advogado e especialista em Direito Eleitoral Antônio Augusto Mayer dos Santos, que vem trabalhando em cima do cenário político de Porto Alegre, destaca que os primeiros indicadores apontam que o quociente eleitoral deva se aproximar de 24 mil votos para que um partido preencha a primeira cadeira na Câmara Municipal.

Com o objetivo de atingir o quociente eleitoral e, assim, garantir uma vaga, os partidos têm buscado fortalecer suas nominatas. Um movimento é ter candidatos que podem fazer grandes votações. Esse movimento deu sinais em março e abril, quando houve uma janela para a troca partidária, sem a perda do mandato. Nesta brecha foi possível notar prefeitos e vereadores trocando de siglas em busca de mais espaço nos partidos que entraram.

Outro movimento é que, quanto maior número de candidatos a vereador, maior a possibilidade de a legenda conseguir conquistar o quociente eleitoral e, dessa forma, pelo menos uma vaga nas câmaras. Segundo Acácio Miranda, a tendência é ter as candidaturas chamadas de “rabo de chapa”, que são os candidatos que vão conquistar poucos votos, mas podem auxiliar a legenda a conseguir conquistar o quociente. Miranda também prevê outro reflexo. Com maior número de candidatos, haverá um processo de pulverização de votos. Assim, na avaliação dele, é possível que os partidos nanicos tenham condições de conquistar uma vaga nas Câmaras. Para o analista, os gestores eleitos poderão ter mais complexidade nas suas administrações ao ter que negociar com Legislativos formados por mais partidos. “A tendência é que a negociação (prefeitos com vereadores) seja mais difícil”, avalia Miranda.

 

A PANDEMIA NA ELEIÇÃO

O enfrentamento à pandemia deverá ser um elemento novo e incerto nas discussões eleitorais. Novo, uma vez que uma pandemia dessa magnitude é inédita no contexto recente da sociedade. Incerto porque é difícil, mesmo para os especialistas, projetar seu impacto. Como que o comportamento dos atuais gestores será interpretado pelos eleitores gera dúvidas. “A disputa sobre qual é a melhor política para enfrentar a pandemia também vai ser objeto de debate e propaganda”, assegura Luís Gustavo Mello Grohmann. Assim, projeta que “as medidas que os governos estão tomando agora serão disputadas mais adiante”.

Rodrigo Stumpf González aponta que o impacto da pandemia irá variar de acordo com cada município, levando em consideração os que foram mais ou menos afetados. “A pandemia foi a possibilidade para alguns prefeitos de se apresentarem como lideranças e defensores da sua comunidade”, complementa.

Assim, é possível projetar que as estratégias eleitorais deverão levar o assunto em consideração, para o lado bom ou crítico. Grohmann prospecta que os temas tradicionais das eleições municipais “tendem a ser deslocados para girar em torno dos efeitos da pandemia, seja do ponto de vista da saúde, seja do ponto de vista da economia ou do social”.

No debate no Congresso Nacional em relação ao adiamento da data da eleição, a Confederação Nacional dos Municípios e a Famurs manifestaram posição a favor da transferência da eleição para 2022, sendo que um dos argumentos era a influência da pandemia. “A pandemia vai prejudicar o debate sobre o futuro das cidades. As atenções vão acabar concentradas no que os gestores fizeram de certo ou errado durante a pandemia”, diz o presidente da Famurs e prefeito de Taquari, Maneco Hassen. Ele afirma que a precarização do debate será ainda mais crítica, uma vez que os eleitores encontrarão cidades “pós-pandemia” com problemas econômicos e sociais. “Essa situação vai exigir um esforço enorme dos prefeitos.”

Há os que acreditam que a pandemia possa permitir uma “grande virada” no que se refere às perspectivas dos gestores que vão buscar a reeleição. Segundo Stumpf González, há aqueles que vieram de três anos modestos de gestão e que, com a pandemia, conquistaram uma visibilidade única e grande aprovação popular. Ao mesmo tempo, há os que executaram bons governos e que podem ter visto a sua aprovação cair nos últimos meses. Para ele, o impacto será maior naquelas cidades de grande porte, nas quais os prefeitos podem ser responsabilizados “por fazer ou não alguma coisa”. Por outro lado, o reflexo de abertura e fechamento do comércio também refletirá e pode ser um ponto negativo a ser explorado pelos adversários.

A pandemia trouxe ainda outros desafios, em especial à Justiça Eleitoral. Segundo o presidente do Tribunal Regional Eleitoral do RS, André Villarinho, as eleições municipais já trazem consigo peculiaridades, porém, a situação sanitária acrescentou outros elementos. Ele cita a preocupação com a saúde dos eleitores e servidores (mesários) que atuarão no processo eleitoral. Essa situação refletiu-se na retirada da biometria, que é considerada um avanço na identificação dos eleitores, cita o presidente do TRE-RS.

 

Reinvenção das campanhas

Terá início segunda-feira o prazo para realização das convenções nas quais são oficializadas as chapas majoritárias e proporcionais que participarão das eleições de novembro. Apesar de a pandemia continuar mobilizando atenções, no cenário político, as articulações são cada vez mais intensas. As definições, neste ano, representam apenas o início da empreitada que terá de ser enfrentada por dirigentes, lideranças e postulantes. Os maiores desafios ainda estão por vir e irão bem mais além da tradicionalmente complexa busca por votos.

A campanha deste ano, sem dúvida, será a mais atípica dos últimos tempos. Fórmulas e manuais terão de ser reinventados em função de restrições inéditas e devido ao cenário imposto pela pandemia, que deflagrou crises sanitária, econômica e social, simultâneas. Originariamente, a preocupação de dirigentes era a vigência, pela primeira vez, da vedação das coligações nas proporcionais, o que força partidos a se empenharem na elaboração de listas ainda mais competitivas, já que não haverá “carona” desta vez.

Todos os atos e mobilizações, começando pelas próprias convenções, terão de observar os protocolos médicos e sanitários. Os programas eleitorais de rádio e TV, que exigem somas consideráveis de recursos, não passarão alheios aos reflexos da pandemia, pela crise financeira gerada pelas restrições de atividades, que levará à escassez de doações. Neste cenário, aliado às limitações de contato físico, as redes sociais, que se destacaram nas eleições gerais de 2018, terão um papel ainda mais decisivo, ampliando os desafios de candidatos e partidos, já que exigem atuação, respostas rápidas a cobranças e espontaneidade.

O desafio irá se impor também à Justiça Eleitoral. Há dois anos, o TSE reconheceu que falhou no combate às fake news. De lá para cá, muita coisa aconteceu, mas os problemas não prometem ser menores. Outra situação é o acesso limitado a pessoas mais vulneráveis, sem conexão natural com a Internet, que podem ficar alheias ou excluídas do processo, e, ainda, o convencimento da importância da manifestação pelo voto em meio à pandemia. As previsões são de índices recordes de abstenções.

 

Informações: Correio do Povo

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