Entre os trabalhadores em atividade, situação é de vulnerabilidade devido à exposição ao vírus em deslocamentos e locais de trabalho
A pandemia de Covid-19, que já matou 2,8 milhões de pessoas no mundo e derrubou a economia global, tornou mais vulnerável uma categoria em especial no Brasil: a das empregadas domésticas. O primeiro efeito medido pelas estatísticas foram as demissões: eram 6,3 milhões de trabalhadoras no último trimestre de 2019. No mesmo período de 2020, o número despencou para 4,9 milhões, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O segundo efeito, válido para quem continua trabalhando, não está nos dados oficiais, apenas no dia a dia de milhões de empregadas domésticas e diaristas: no deslocamento ou no ambiente de trabalho, elas se expõem intensa e diariamente à circulação do vírus que, apenas nesta quarta-feira, matou 3.869 brasileiros, o recorde da pandemia no país.
“O trabalho doméstico é basicamente de cuidado com a casa e com as pessoas. Envolve relações interpessoais em uma casa que não é a da empregada, onde ela não tem qualquer controle sobre os movimentos”, diz Luana Pinheiro, pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e estudiosa do tema. “É uma condição de segurança bastante frágil, em que a doméstica muitas vezes se torna a ponte para levar o vírus para dentro de sua casa e para a periferia.”
Luana lembra que a primeira morte por covid no Brasil foi de um porteiro de 62 anos em São Paulo e, no Rio de Janeiro, de uma empregada que teve contato com a patroa infectada pelo coronavírus e que havia retornado de uma viagem à Itália. “Não é coincidência que o vírus tenha entrado no país por meio das populações de mais alta renda e que as primeiras mortes tenham sido de trabalhadores que ocupam posições precárias. As vítimas são pessoas que se contaminaram nesse contexto de extrema vulnerabilidade”, diz Luana, que defende que, por sua exposição, as domésticas deveriam figurar nos grupos prioritários na campanha de vacinação.
Segurança no trabalho
Para garantir a segurança da categoria e reduzir os riscos no ambiente de trabalho, o Sindoméstica (Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo) recomendou aos empregadores, no início da pandemia, que priorizassem o isolamento dessas trabalhadoras.
“Também sugerimos meios que pudessem reduzir o impacto de possíveis demissões, como antecipação de férias, licença remunerada e implantação de banco de horas. No melhor cenário, alguns empregadores continuaram pagando os salários dos funcionários e os mantiveram isolados”, diz Nathalie Rosário de Alcides, advogada da Sindoméstica.
Foi o que aconteceu com a doméstica Eliana Maria de Moura, de 36 anos, que era mensalista. Ela trabalhava para dois aposentados e, no início da pandemia, foi liberada para ficar em casa, ainda recebendo o salário. “Fiquei 9 meses isolada e, a partir daí, passei a ir uma vez por mês. Até que, em fevereiro último, fui demitida”, conta. “Eu fiquei muito assustada, mas no fundo sei que eles continuaram comigo até quando foi possível.”
Com dois filhos menores de idade e o aluguel para vencer, Eliana ainda aguarda a liberação do seguro-desemprego. O ex-marido contribui com R$ 100 por mês. “Estou ficando desesperada. Vou para todos os lados procurar emprego, mas está tudo fechado. Mesmo nas casas de família estão com receio”, afirma. Um de seus planos no momento é fazer um curso de cuidados com animais e buscar uma colocação em um pet shop.
Queda de renda
Assim como aconteceu com Eliana, a pandemia castigou o emprego de milhares de domésticas. “Em muitos casos, isso aconteceu porque os patrões também foram afetados pelo desemprego e pela queda de renda, o que tornou os desligamentos inevitáveis”, diz Nathalie Alcides, do Sindoméstica.
Entre os trabalhadores que conseguiram continuar trabalhando e eram considerados indispensáveis, como aqueles que cuidam de crianças, idosos e doentes, a entidade solicitou ao sindicato patronal que os empregadores fornecessem, além de equipamentos de proteção individual, transporte seguro e adoção de políticas de flexibilização de jornada.
A partir de abril do ano passado, conta Nathalie, 65% dos patrões optaram pelo programa do governo federal que permite a suspensão dos contratos de trabalho, encerrado em dezembro e que deve ser reativado nos próximos dias. “Outros 35% utilizaram a modalidade de redução de jornada e de salário”, diz.
Pessoa física
Esse tipo de ajuste foi necessário para adequar o trabalho doméstico à nova realidade. “Precisamos lembrar que a empregadora é uma pessoa física. Muitas vezes, ela própria teve a jornada e o salário reduzidos ou até perdeu o emprego”, explica a advogada Karla Resende, presidente do Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado de São Paulo.
No início da pandemia, a exemplo do que o Sindoméstica sugeriu, quem pôde antecipou férias, flexibilizou horários ou reduziu a jornada. “A rescisão não é a primeira solução”, afirma Karla. Para quem manteve os contratos e está com os funcionários na ativa, a recomendação é minimizar os riscos.
“Alguns empregadores bancam o transporte do funcionário por carro de aplicativo ou até liberam seus motoristas para esse fim. Outros flexibilizam os horários de modo a evitar o horário de pico no transporte público.” Além disso, diz Karla, a orientação é sempre fornecer álcool gel e equipamentos de segurança.
Contratos informais
As garantias de proteção são mais facilmente cumpridas quando se fala de contratos formais de trabalho. O problema, segundo os especialistas, são os informais, como as diaristas. Entre as trabalhadoras domésticas, elas foram ainda mais sacrificadas. “Trata-se de um vínculo precário e, assim, muito mais simples de ser desfeito”, diz a pesquisadora Luana Pinheiro, do Ipea. Hoje, para cada três trabalhadores domésticos empregados, apenas um tem registro em carteira, estima o Sindoméstica.
“Quando a diarista é demitida, ela fica sem as garantias mínimas. Invisível para o governo, não tem direito, por exemplo, ao seguro-desemprego”, conta Nathalie Alcides. Estimativa do IBGE aponta que dois terços das domésticas informais em atividade no país, cerca de 2,5 milhões pessoas, pleitearam e receberam o auxílio-emergencial no ano passado. O número provavelmente é maior porque os dados não computam as trabalhadoras demitidas.
“Esses números revelam o quão vulneráveis são essas mulheres e o quanto o auxílio foi uma política extremamente relevante para a categoria”, afirma a pesquisadora do Ipea. “Além de manter níveis mínimos de renda e consumo, o auxílio possibilita o isolamento social e a proteção da trabalhadora e de sua família.”
Questão de saúde
Sua saúde e a proteção da família foram fatores decisivos para que a diarista Edite de Souza Ananias, de 57 anos, optasse pelo isolamento social por conta própria. Hipertensa, ela trabalhava em duas casas até o início da pandemia. “Fiquei com muito medo e achei melhor parar de trabalhar. Graças a Deus, continuei recebendo os pagamentos por cinco meses e meu marido, que segue trabalhando, mantém a casa”, conta.
Por causa desse suporte, Edite decidiu não solicitar o auxílio emergencial. “Eu sei que tem pessoas que precisam muito mais do que eu”, afirma. A diarista, que faz aulas de zumba dentro de casa e caminha pelo condomínio para passar o tempo e “não ficar doida”, diz que pretende voltar a trabalhar. Só tem uma condição: “Depois de ser vacinada.”
Informações: Correio do Povo